“O povo não possui mais o direito de aplacar a
própria sede. Esse direito, hoje em dia, é exclusividade dos ricos. Até mesmo o
presidente da Índia lamentou tal infortúnio: ‘Enquanto a elite se compraz com
bebidas gazeificadas, os pobres rivalizam por um punhado de água enlameada’.”
A Grande Sede
Nas maquiladoras do México, o mais corriqueiro dos atos, aquele de beber
água quando estamos sedentos, tornou-se tão improvável e espetacular que
crianças e bebês aplacam a sede ingerindo Coca e Pepsi-Cola.
Os produtos da Coca-Cola são comercializados em 195 países, gerando um
rendimento de 16 bilhões de dólares. A escassez de água é, sem sombra de
dúvida, uma fonte de lucros para a companhia. A própria Coca-Cola não esconde
essa informação, publicando-a num de seus relatórios anuais.
Todas as manhãs acordamos certos de que cada um dos 5,6 bilhões de
habitantes do planeta ficará sedento em alguma hora do dia. Se conseguirmos, de
alguma forma, restituir a esses 5,6 bilhões o direito à água potável, evitando
que se rendam à Coca-Cola, estaremos semeando, aqui e agora, um futuro melhor.
As companhias de refrigerantes estão completamente atentas para o
mercado de águas. Tanto a Coca-Cola quanto a Pepsi lançaram produtos nessa
linha, a primeira com a etiqueta Bom Aqua e a segunda com o rótulo Aquafina.
Mas há inúmeras outras marcas, como Perrier, Evian, Naya, Poland Spring,
Clearly Canadian e Purely Alaskan.
Em março de 1999, numa pesquisa envolvendo 103 marcas de água
engarrafada, a Natural Resoures Defense Council descobriu que um quarto delas
não era senão água de torneira, enquanto um terço, o que é mais grave, continha
arsênico e E. Coli. Na Índia, um estudo conduzido pelo Consumer Education and
Researsh Centre revelou que somente três dentre treze marcas conhecidas
confirmavam as especificações do rótulo. Das marcas condenadas, nenhuma estava
livre de bactérias, embora anunciassem justamente o contrário. Tal publicidade
falsa e enganosa forçou o governo indiano a alterar as regras de prevenção de
adulteração de alimentos. Hoje, essas regras se aplicam também às águas
engarrafadas e estabelecem uma rígida distinção entre águas minerais obtidas
diretamente das fontes (e acondionadas próximo a elas) e aquelas meramente
tratadas para consumo.
Mas as conseqüências do engarrafamento de água vão muito além dos preços
altos e da contaminação por agentes nocivos. De fato, a poluição ambiental é a
maior das calamidades que a indústria de águas nos pode impingir. Há cerca de
30 anos, 300 milhões de garrafas d’água já eram comercializadas com material
que hoje constitui verdadeira praga: o plástico não reciclável.
As corporações, como era de se esperar, estão tirando todas as vantagens
da demanda por água pura, demanda essa que é conseqüência da poluição ambiental
para a qual elas tanto contribuem. Embora realizem uma atividade exclusivamente
extra-tiva, retirando água de mananciais não industrializados e não poluídos,
as corporações se referem a essa prática como “manufatura” da água. Empresas
como Nestlé, Pepsi e Coca-Cola estão abrindo fábricas para engarrafamento de
água em vários países do terceiro mundo. Somente na Índia, o mercado de águas
concentra mais de 104 milhões de dólares, com uma estimativa de aumento de 50 a
70% por ano. Em outras palavras: a produção de água engarrafada dobra a cada
dois anos. Entre 1992 e 2000, as vendas cresceram de 95 milhões para 932
milhões de litros.
À medida que a indústria de engarrafamento de água se expande velozmente
pela Índia, o antigo costume de oferecer água aos sedentos vai desaparecendo.
Durante milhares de anos a água foi ofertada como dádiva em templos e mercados
à beira de estradas. Potes de barros, mesmo no verão, mantinham a água fresca
para deleite dos sedentos, que a sorviam utilizando-se das próprias mãos em
forma de concha. Esses potes estão dado lugar a garrafas de plástico, e a
economia da dádiva vem sendo suplantada pela economia de mercado. O povo não
possui mais o direito de aplacar a própria sede. Esse direito, hoje em dia, é
exclusivamente dos ricos. Até mesmo o presidente da Índia lamentou tal
infortúnio: “Enquanto a elite se compraz com bebidas gazeificadas, os pobres
rivalizam por um punhado de água enlameada”.
A Luta das mulheres de Plachimada contra a
Coca-Cola
Numa pequena vila e Plachimada, na Índia, mulheres organizaram-se para
interromper as atividades de uma fábrica de Coca-Cola; e, por incrível que
pareça, estão obtendo sucesso nessa campanha.
Há um ano a fábrica iniciou a produção de Coca, Fanta e Sprite. Nesse
ínterim, o nível do lençol freático da região começou a declinar a olhos
vistos. Segundo a comunidade local, a queda se explicava pelo fato de que 1,5
milhão de litros de água eram extraídos por dia de poços perfurados pela
multinacional (Vale informar que cada litro de refrigerante requer, para sua
fabricação, de 3 a4 litros de água. Levando-se em conta o número de
refrigerantes vendidos em 2001 na Índia, pode-se afirmar que a Coca-Cola
usurpou perto de 30 milhões de litros de água do território indiano naquele
ano, ou seja, aproximadamente 80 milhões de litros por dia).
Os problemas, no entanto, não se limitavam à queda do nível do lençol
freático: a água, tornou-se também poluída. As mulheres eram obrigadas a
percorrer milhas de distância em busca de água potável. Revoltadas, decidiram
dar fim à hidropirataria da Coca-Cola: plantaram-se em frente aos portões da
fábrica e, bradando as palavras de ordem “Não à Coca-Cola e Sim à Água”,
exigiram o seu fechamento. Tal manifestação foi um exemplo de democracia
conectada diretamente com as fontes vibrantes da vida.
Logo depois, os dirigentes locais emitiram uma licença condicional que
impunha limites à extração de água pela Coca-Cola. Mas a companhia, atropelando
as autoridades, chegou ainda a extrair ilegalmente centenas de milhares de
litros de água limpa por dia para fabricar seus refrigerantes. Além disso,
estava a Coca-Cola conduzindo os resíduos sólidos dos poços exauridos para além
de seus muros. Na estação das chuvas, esses resíduos atingiam os campos de
arroz, os canais e as fontes d’água, trazendo sérios riscos para a saúde da
população. Como conseqüência dessas injúrias à natureza. 260 poços instalados
pelo governo visando a fornecer tanto água potável quanto irrigação para a
agricultura, estão hoje quase que extintos.
Inquirida pelo poder público sobre pormenores de suas atividades, a
Coca-Cola recusou-se a colaborar. As autoridades, por conseguinte, valendo-se
de uma notificação judicial, cassaram-lhe a licença. Partiu então a
multinacional para uma prática ímproba da qual não costuma abrir mão: tentou
subornar um governante com 300 milhões de rúpias. Mas ele, exemplo de coragem e
retidão, negou-se a ser cooptado e a engrossar as fileiras de políticos
dissolutos e prostutuídos.
As autoridades locais também entraram com uma ação contra a Coca-Cola no
Tribunal de Justiça. Em dezembro de 2003, a Justiça garantiu os direitos das
mulheres de Plachimada, ordenando à Coca-Cola a interrupção das atividades de
hidropirataria que empreendia na região.
Tal decisão é uma prova do poder do movimento das mulheres de Plachimada
contra a Coca-Cola. Em janeiro de 2004, a Conferência Internacional sobre Águas
realizou-se naquela localidade não só para celebrar a vitória legal, mas também
para levar solidariedade ao movimento. É preciso fortalecê-lo ainda mais a fim
de que o alvo, o fechamento da fábrica, seja alcançado.
Na ocasião, foi redigida a Declaração de Plachimanda.
Declaração de Plachimada
1 – A água é o fundamento da vida. Ela é uma dádiva da Natureza e
pertence a todos os seres vivos do planeta.
2 – A água não é uma propriedade privada. Ela é um recurso comum para a
subsistência de todos.
3 – A água é o mais fundamental direito do homem. Ela deve ser
conservada, protegida e administrada, visando ao bem de todos. É nossa obrigação
básica preservá-la e garanti-la para gerações futuras.
4 – A água não é uma mercadoria. Devemos lutar contra qualquer tentativa
criminosa de negociar ou privatizar a água. Só através dessa luta é que podemos
assegurar o fundamental e inalienável direito à água para todos os povos da
Terra.
5 – A Política da Água deve, necessariamente, ser formulada tendo por
base as premissas anteriores.
6 – O direito de conservar, utilizar e administrar a água deve ser
integralmente conferido à comunidade local. Esta é a base mesma da democracia
da água. Qualquer tentativa de reduzir ou negar este direito constitui crime.
7 – A fabricação e comercialização dos produtos tóxicos da Coca e Pepsi-Cola
levam à total destruição e poluição de importantes recursos naturais, pondo em
risco a própria sobrevivência das comunidades locais.
8 – A resistência que tem surgido em Plachimada, Pududdery e em várias
partes do mundo é um símbolo da brava luta contra as corporações diabólicas que
pirateiam nossa água.
Vandana Shiva é diretora da Fundação de Pesquisa para a Ciência,
Tecnologia e Ecologia, em Nova Delhi, Índia, e uma grande ativista ambiental.