quarta-feira, 25 de abril de 2012

A Guerra da Água - Vandana Shiva



“O povo não possui mais o direito de aplacar a própria sede. Esse direito, hoje em dia, é exclusividade dos ricos. Até mesmo o presidente da Índia lamentou tal infortúnio: ‘Enquanto a elite se compraz com bebidas gazeificadas, os pobres rivalizam por um punhado de água enlameada’.”
 
A Grande Sede
Nas maquiladoras do México, o mais corriqueiro dos atos, aquele de beber água quando estamos sedentos, tornou-se tão improvável e espetacular que crianças e bebês aplacam a sede ingerindo Coca e Pepsi-Cola.
Os produtos da Coca-Cola são comercializados em 195 países, gerando um rendimento de 16 bilhões de dólares. A escassez de água é, sem sombra de dúvida, uma fonte de lucros para a companhia. A própria Coca-Cola não esconde essa informação, publicando-a num de seus relatórios anuais.
Todas as manhãs acordamos certos de que cada um dos 5,6 bilhões de habitantes do planeta ficará sedento em alguma hora do dia. Se conseguirmos, de alguma forma, restituir a esses 5,6 bilhões o direito à água potável, evitando que se rendam à Coca-Cola, estaremos semeando, aqui e agora, um futuro melhor.
As companhias de refrigerantes estão completamente atentas para o mercado de águas. Tanto a Coca-Cola quanto a Pepsi lançaram produtos nessa linha, a primeira com a etiqueta Bom Aqua e a segunda com o rótulo Aquafina. Mas há inúmeras outras marcas, como Perrier, Evian, Naya, Poland Spring, Clearly Canadian e Purely Alaskan.
Em março de 1999, numa pesquisa envolvendo 103 marcas de água engarrafada, a Natural Resoures Defense Council descobriu que um quarto delas não era senão água de torneira, enquanto um terço, o que é mais grave, continha arsênico e E. Coli. Na Índia, um estudo conduzido pelo Consumer Education and Researsh Centre revelou que somente três dentre treze marcas conhecidas confirmavam as especificações do rótulo. Das marcas condenadas, nenhuma estava livre de bactérias, embora anunciassem justamente o contrário. Tal publicidade falsa e enganosa forçou o governo indiano a alterar as regras de prevenção de adulteração de alimentos. Hoje, essas regras se aplicam também às águas engarrafadas e estabelecem uma rígida distinção entre águas minerais obtidas diretamente das fontes (e acondionadas próximo a elas) e aquelas meramente tratadas para consumo.
Mas as conseqüências do engarrafamento de água vão muito além dos preços altos e da contaminação por agentes nocivos. De fato, a poluição ambiental é a maior das calamidades que a indústria de águas nos pode impingir. Há cerca de 30 anos, 300 milhões de garrafas d’água já eram comercializadas com material que hoje constitui verdadeira praga: o plástico não reciclável.
As corporações, como era de se esperar, estão tirando todas as vantagens da demanda por água pura, demanda essa que é conseqüência da poluição ambiental para a qual elas tanto contribuem. Embora realizem uma atividade exclusivamente extra-tiva, retirando água de mananciais não industrializados e não poluídos, as corporações se referem a essa prática como “manufatura” da água. Empresas como Nestlé, Pepsi e Coca-Cola estão abrindo fábricas para engarrafamento de água em vários países do terceiro mundo. Somente na Índia, o mercado de águas concentra mais de 104 milhões de dólares, com uma estimativa de aumento de 50 a 70% por ano. Em outras palavras: a produção de água engarrafada dobra a cada dois anos. Entre 1992 e 2000, as vendas cresceram de 95 milhões para 932 milhões de litros.
À medida que a indústria de engarrafamento de água se expande velozmente pela Índia, o antigo costume de oferecer água aos sedentos vai desaparecendo. Durante milhares de anos a água foi ofertada como dádiva em templos e mercados à beira de estradas. Potes de barros, mesmo no verão, mantinham a água fresca para deleite dos sedentos, que a sorviam utilizando-se das próprias mãos em forma de concha. Esses potes estão dado lugar a garrafas de plástico, e a economia da dádiva vem sendo suplantada pela economia de mercado. O povo não possui mais o direito de aplacar a própria sede. Esse direito, hoje em dia, é exclusivamente dos ricos. Até mesmo o presidente da Índia lamentou tal infortúnio: “Enquanto a elite se compraz com bebidas gazeificadas, os pobres rivalizam por um punhado de água enlameada”.
 
A Luta das mulheres de Plachimada contra a Coca-Cola
Numa pequena vila e Plachimada, na Índia, mulheres organizaram-se para interromper as atividades de uma fábrica de Coca-Cola; e, por incrível que pareça, estão obtendo sucesso nessa campanha.
Há um ano a fábrica iniciou a produção de Coca, Fanta e Sprite. Nesse ínterim, o nível do lençol freático da região começou a declinar a olhos vistos. Segundo a comunidade local, a queda se explicava pelo fato de que 1,5 milhão de litros de água eram extraídos por dia de poços perfurados pela multinacional (Vale informar que cada litro de refrigerante requer, para sua fabricação, de 3 a4 litros de água. Levando-se em conta o número de refrigerantes vendidos em 2001 na Índia, pode-se afirmar que a Coca-Cola usurpou perto de 30 milhões de litros de água do território indiano naquele ano, ou seja, aproximadamente 80 milhões de litros por dia).
Os problemas, no entanto, não se limitavam à queda do nível do lençol freático: a água, tornou-se também poluída. As mulheres eram obrigadas a percorrer milhas de distância em busca de água potável. Revoltadas, decidiram dar fim à hidropirataria da Coca-Cola: plantaram-se em frente aos portões da fábrica e, bradando as palavras de ordem “Não à Coca-Cola e Sim à Água”, exigiram o seu fechamento. Tal manifestação foi um exemplo de democracia conectada diretamente com as fontes vibrantes da vida.
Logo depois, os dirigentes locais emitiram uma licença condicional que impunha limites à extração de água pela Coca-Cola. Mas a companhia, atropelando as autoridades, chegou ainda a extrair ilegalmente centenas de milhares de litros de água limpa por dia para fabricar seus refrigerantes. Além disso, estava a Coca-Cola conduzindo os resíduos sólidos dos poços exauridos para além de seus muros. Na estação das chuvas, esses resíduos atingiam os campos de arroz, os canais e as fontes d’água, trazendo sérios riscos para a saúde da população. Como conseqüência dessas injúrias à natureza. 260 poços instalados pelo governo visando a fornecer tanto água potável quanto irrigação para a agricultura, estão hoje quase que extintos.
Inquirida pelo poder público sobre pormenores de suas atividades, a Coca-Cola recusou-se a colaborar. As autoridades, por conseguinte, valendo-se de uma notificação judicial, cassaram-lhe a licença. Partiu então a multinacional para uma prática ímproba da qual não costuma abrir mão: tentou subornar um governante com 300 milhões de rúpias. Mas ele, exemplo de coragem e retidão, negou-se a ser cooptado e a engrossar as fileiras de políticos dissolutos e prostutuídos.
As autoridades locais também entraram com uma ação contra a Coca-Cola no Tribunal de Justiça. Em dezembro de 2003, a Justiça garantiu os direitos das mulheres de Plachimada, ordenando à Coca-Cola a interrupção das atividades de hidropirataria que empreendia na região.
Tal decisão é uma prova do poder do movimento das mulheres de Plachimada contra a Coca-Cola. Em janeiro de 2004, a Conferência Internacional sobre Águas realizou-se naquela localidade não só para celebrar a vitória legal, mas também para levar solidariedade ao movimento. É preciso fortalecê-lo ainda mais a fim de que o alvo, o fechamento da fábrica, seja alcançado.
Na ocasião, foi redigida a Declaração de Plachimanda.
 
Declaração de Plachimada
 
1 – A água é o fundamento da vida. Ela é uma dádiva da Natureza e pertence a todos os seres vivos do planeta.
2 – A água não é uma propriedade privada. Ela é um recurso comum para a subsistência de todos.
3 – A água é o mais fundamental direito do homem. Ela deve ser conservada, protegida e administrada, visando ao bem de todos. É nossa obrigação básica preservá-la e garanti-la para gerações futuras.
4 – A água não é uma mercadoria. Devemos lutar contra qualquer tentativa criminosa de negociar ou privatizar a água. Só através dessa luta é que podemos assegurar o fundamental e inalienável direito à água para todos os povos da Terra.
5 – A Política da Água deve, necessariamente, ser formulada tendo por base as premissas anteriores.
6 – O direito de conservar, utilizar e administrar a água deve ser integralmente conferido à comunidade local. Esta é a base mesma da democracia da água. Qualquer tentativa de reduzir ou negar este direito constitui crime.
7 – A fabricação e comercialização dos produtos tóxicos da Coca e Pepsi-Cola levam à total destruição e poluição de importantes recursos naturais, pondo em risco a própria sobrevivência das comunidades locais.
8 – A resistência que tem surgido em Plachimada, Pududdery e em várias partes do mundo é um símbolo da brava luta contra as corporações diabólicas que pirateiam nossa água.
 
 
Vandana Shiva é diretora da Fundação de Pesquisa para a Ciência, Tecnologia e Ecologia, em Nova Delhi, Índia, e uma grande ativista ambiental.
 

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