segunda-feira, 12 de março de 2012

Pau-Brasil: nosso primeiro caso de biopirataria

Diversos cronistas estiveram no Brasil e entre estranhamentos e encantamentos, nos deixaram relatos que deveriam ser leitura obrigatória para entendermos melhor a história de nosso país e os povos que aqui já estavam.  Entre eles, os franceses André Thevet ( 1502-1590) e Jean de Léry (1534-1611) se destacam pela sensibilidade e curiosidade em relação à fauna e a flora brasileiras e, principalmente, o povo que travaram maior contato: os Tupinambá.
André Thevet, franciscano que chegou em terras brasileira em 1555, conta como o milho, a mandioca e cauim fizeram parte da receptividade dos indígenas logo que desembarcou em cabo frio:

" Um de seus maiores, o morbixauaçu, ou seja, seu rei, presenteou-nos com farinha de raízes e cauim, beberagem feita de uma espécie de sorgo chamado avati (milho), cujos grãos são do tamanho de ervilhas. Há o avati preto e branco(...)". 
Como não poderia deixar de ser destaque, o pau-brasil também é descrito e sua extração ganhou uma gravura que ficou eternizada:

" Tal árvore, tendo sido descoberta em nosso tempo, serviu de grande alívio aos mercadores...chegando a este país e vendo os selvagens adornados como tão belas plumagens de cores diversas e também que esse povo tinha o corpo pintado diversificadamente, indagaram qual o meio dessa tintura, e alguns lhes mostraram a árvore a que chamamos brasil e os selvagens oraboutan".


" Os navios estão às vezes longe quatro ou cinco léguas do lugar onde se faz o corte, e todo o lucro que essa pobre gente tem de tanto esforço é alguma camisa ordinária ou o forro de alguma vestimenta de pouco valor. Eu fiz reproduzir aqui o desenho, tanto da árvore como dos homens que trabalham para derrubá-la e parti-la em pedaços, o que lhes custa tanto esforço que, tendo-a levado até os navios, podem-se ver, depois de algumas viagens, suas costas todas machucadas e feridas pelo peso da madeira, tão pesada e maciça como todos sabem, e não deve surpreender que estejam nus e carregando tão longe essa carga..."

Jean de Léry, missionário calvinista que viveu entre os Tupinambá do Rio de Janeiro no século XVI, registrou em seu livro "Viagem à Terra do Brasil" relatos preciosíssimos em que aborda os costumes  dos Tupinambá com observações pontuais. Léry afirmava que "por mais obtusos que sejam, atribuem esses selvagens maior importância à natureza do que nós ao poder e à procedência divina".

Esse delicioso diálogo que Léry  travou com um ancião Tupinambá, mostra uma grande sensibilidade por parte desse povo e nos alerta para o primeiro caso de biopirataria no país :

“Uma vez um velho me perguntou:
- Por que vocês, maír e peró* , vem buscar lenha de tão longe para se aquecer? Vocês não tem madeira em sua terra?
Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele pensava, mas dela tirávamos tinta para tingir.
- E vocês precisam de muita?, perguntou o velho imediatamente.
- Sim, contestei-lhe, pois em nosso país existem negociantes que possuem panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias que vocês nem imaginam e um só deles compra todo o pau-brasil que vocês tem, voltando com muitos navios carregados.
- Ah!, retrucou o selvagem, mas esse homem tão rico, de que me fala, não morre?
- Sim, disse eu, como os outros.
- E quando morre, para quem fica o que deixa?
- Para seus filhos, se ele tem, ou para seus irmãos ou parentes próximos, respondi.
- Na verdade, continuou o velho - que como se vê não era nenhum ignorante - , vejo que vocês, maír, são uns grandes loucos, pois atravessam o mar e sofrem grandes problemas, como dizem quando aqui chegam. E no fim trabalham tanto para amontoar riquezas para seus filhos e parentes. A terra que os alimentou não será capaz de alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos. Mas estamos certos de que, depois de nossa morte, a terra que nos sustentou os sustentará também e por isso descansamos sem maiores preocupações.

*Os Tupinambá chamavam os franceses de maír e os portugueses de peró.

Mais:

LÉRY, J. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980.
THEVET, A. A cosmografia universal de André Thevet, cosmógrafo do Rei. Ed. Fundação Darcy Ribeiro. 2009

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