Senti uma baita necessidade de escrever esse post depois que assisti o filme " Violeta foi ao céu" (Violeta se fue a los cielos), uma biografia da multiartista chilena Violeta Parra. Não vou fazer uma resenha sobre o filme, mas há uma passagem do mesmo em que o "angelito" merece destaque. Dá-se o nome de "angelito" às crianças que falecem antes de completar três anos e, segundo as tradições do campo chileno, o velório do "angelito" é uma das principais instâncias do canto ao divino. Essa prática também pode ser encontrada em algumas regiões do Uruguai e Argentina.
A cerimônia conta com diversos cantos e rezas em meio a incensos. Há também uma ceia que ocorre à meia-noite e a construção de uma espécie de altar onde o corpinho da criança é vestido como um anjo: colocam uma túnica e o adornam com asas para que faça sua viagem aos céus. Ás vezes o corpinho é colocado de pé ou sentado, com as mãos juntas segurando um ramo de flores brancas. O ritual é acompanhado por cânticos, rezas e, em algumas ocasiões, com um baile conhecido como balambo.
Pode nos parecer estranho e de mau gosto mas, um ritual desses diviniza o angelito e atenua a dor. Pura, a criança é livre de pecados e ascende diretamente aos céus. No entanto, não é recomendável chorar, pois as lágrimas podem molhar as asas do "angelito" e dificultar sua viagem.
Violeta Parra perdeu sua filha ainda bebê e transformou sua dor numa fabulosa canção chamada "Rin del Angelito" disponível no vídeo abaixo, cujas cenas são do filme chileno "Largo Viaje" , de 1967, que retrata o velório de um angelito.
Mas afinal, por que a necessidade de escrever sobre isso?
O filme me remeteu à situações que vivenciei, trabalhando com as populações indígenas. Infelizmente, presenciei a morte de alguns angelitos indígenas e foram momentos muito difíceis. Porém, uma delas ficou cravada na memória: minha primeira viagem à uma aldeia Kulina no AM. Foi um verdadeiro batismo de fogo.
Ao chegar na aldeia vimos que uma mãe Kulina estava muito aflita, pois sua bebê de apenas 1 ano encontrava-se muito desidratada. Provavelmente devido à uma virose que havia contraído. Como já haviam tentado curá-la e não obtiveram sucesso, pediram que a levássemos para o hospital o mais rápido possível. Prontamente, colocamos mãe e filha no barco e, com o motor no máximo, nos dirigimos à cidade. Mas esta ficava muito distante, quase um dia inteiro de viagem.
Preparei um soro caseiro e ministrava uma colher à bebê de cinco em cinco minutos. O estado dela era tão grave que as moscas pousavam sem descanso. À certa altura, numa das pausas, ouço a mãe chorando. Meus companheiros de trabalho, nervosos ao extremo, olham pra mim atônitos. Me dirijo à mãe e pego a bebê de seus braços: está morta. Não me resta outra alternativa a não ser enrolá-la num lençol e seguir viagem. Cai uma chuva torrencial, dessas de lavar a alma. Não, não havia onde nos abrigarmos, era só floresta e rio... Após horas intermináveis, chegamos à cidade onde o "angelito" foi posteriormente sepultado.
Nesse dia, intimei Deus e tive minha maior briga com ele.
Belo texto. Salvem os angelitos!
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