terça-feira, 4 de dezembro de 2012

José Mujica, o presidente "mais pobre" do mundo


Nada em particular na casa do presidente José Mujica indica quem vive realmente alí: um homem com um passado cinematográfico que exerce o cargo de maior poder no Uruguay. 
Ao chegar em sua chácara, em uma zona rural de Montevideo, pode ver-se desde a rua, as roupas de Mujica e sua esposa, a senadora Lucia Topolansky, estendida ao ar na manhã de uma primavera austral.

Ele está sentado à sombra, ao lado do portão de entrada. Veste uma velha calça de algodão arregaçada, camisa polo e jaqueta esportiva. Sua pequena cachorra Manuela -mestiça e com uma pata amputada o acompanha, cheirando-o.
"Não tenho religião, mas sou quase um panteísta: admiro a natureza", disse durante uma longa conversa exclusiva com a BBC Mundo. " Admiro quase como quem admira a magia". 
Toca um telefone e Mujica tira do bolso um velho celular dobrável, atado a um elástico. O elástico se rompe, mas o presidente dá um nó enquanto fala. E torna a colocar em volta do celular.
"Não me disfarço de presidente e sigo sendo como sempre fui", comenta.
Sua imagem não encaixa necessariamente com a de um chefe de Estado do século XXI. Não usa Twitter, nem correio eletrônico e em seu tempo livre se dedica a cultivar flores e hortaliças.
Doa quase 90% do seu salário para caridade e segundo sua última declaração de bens tem, com Topolansky um patrimônio de uns US$200 mil: a chácara, dois velhos fuscas "escaravelhos" e três tratores.
É um estilo de vida que não tem passado despercebido pela imprensa internacional e nas redes sociais, que o tem chamado de "o presidente mais pobre do mundo". Também tem dado a volta ao mundo para promover um projeto de lei que permitiria ao Estado uruguayo produzir e vender maconha.
"Galopar para dentro"
"Estive sete anos sem ler um livro. Tive que repensar tudo e aprender a galopar para dentro por momentos, para não ficar louco"
José Mujica
Mujica, a quem muitos uruguaios chamam simplesmente "Pepe", está longe de ser um outsider da política, uma atividade que ele vai garantir "com pernas para frente", o que significa que pensa em praticá-la enquanto estiver vivo.
Nasceu há 77 anos e quando jovem militou no Partido Nacional (PN, opositor ao governo) e nos anos 60 foi fundador do Movimento de Liberação Nacional-Tupamaros (MLN-T), uma guerrilha urbana de esquerda influenciada pela revolução cubana e o marxismo.
Foi ferido de bala e detido em várias ocasiões. Em 1971 fugiu do cárcere junto a mais de uma centena de militantes, em uma das maiores fugas carcerárias da história do país. Foi recapturado, escapou e caiu preso outra vez.
No total, passou 14 anos preso.
Após o golpe de Estado de 1973, integrou um grupo de "nove reféns" tupamaros que o regime militar manteve em condições desumanas de tortura e isolamento, fechado um tempo em uma cisterna.
Esses anos de soidão foram provavelmente os que mais me ensinaram. Estive sete anos sem ler um livro. Tive que repensar tudo e aprender a "galopar para dentro" para não ficar louco.
"Necessito pouco"
Recuperou a liberdade com uma anistia em 1985 e uma década depois foi eleito deputado, em seguida senado e em 2005 foi ministro da Agricultura do primeiro governo da coalizão de esquerda Frente Ampla.
"Não sou o presidente pobre, pobre são os que querem mais", assegura Mujica.
Ele venceu o segundo turno das eleições presidenciais de novembro de 2009 com 53% dos votos. No entanto, segui vivendo na casa que morava com sua mulher, onde na entrada há uma sala cheia de imagens e recordações e atrás, uma cozinha onde Mujica lava com as mãos uns copos para servir uma bebida aos visitantes.

"Para viver preciso de dois ou três cômodos, uma cozinha, o básico que eu e minha companheira arrumamos rapidinho. 

Mujica afirma que a austeridade é parte de uma "luta pela liberdade".

"Se tenho poucas coisas, necessito pouco para sustentá-las", raciocina. "Portanto, meu tempo de trabalho eu dedico ao mínimo. Para que eu preciso de tempo? Para gastá-lo com as coisas que eu gosto. Nesse momento, creio que sou livre". 
Pregação e governo

Apesar de sua reivindicação de austeridade, há quem  diga que o governo gasta mais do que arrecada. E apesar de sua fala anti-consumista, durante sua gestão, os uruguaios tem comprado muitos carros e outros bens de consumo importados como poucas vezes na história do país.

" A crítica que Mujica faz utilizando a palavra consumismo, ocorre a partir de uma visão filosófica", disse Marcelo Lombardi, presidente da Câmara de Comércio e Serviços do Uruguai.
O ex-presidente Luis A. Lacalle (PN), que perdeu o segundo turno eleitoral de 2009 para Mujica, afirma que este assumiu com a "maioria no parlamento e uma prosperidade econômica como há anos o país não conhecia".
"Hoje, na metade do mandato do presidente Mujica, podemos dizer que sua gestão não tem sido tão boa como poderia ser", disse Lacalle à BBC Mundo e menciona problemas na saúde, educação e obras públicas.

Em sua casa de Carrasco, um bairro abastado de Montevideo, Lacalle afirma que Mujica "se confunde e às vezes sai da mera modéstia, que (...) é uma opção, para entrar na crença de que é popular falar mal. dizer palavras grosseiras".
"O presidente tem que ser um exemplo", diz. "Um presidente que usa mal as palavras e usa palavras comuns não é o que um país quer".
"Que critiquem tudo o que quiserem"
Segundo pesquisas recentes, a popularidade de Mujica tem caído para baixo de 50% e a aprovação de seu desempenho como presidente é menor que 40%.
Para alguns uruguaios, a austeridade não é sinônimo de um bom governante, não é passagem direta para a aprovação.

Ignacio Zuasnabar, da pesquisa local Equipos, explica que a imagem de homem comum e atual "é um ponto muito importante de Mujica que é valorizado pelas pessoas, mas não necessariamente isto é suficiente para conter críticas sobre outros aspectos da gestão".
"A gestão do governo está apresentando alguns questionamentos quanto aos resultados", disse.
Também explica que o presidente tem "um estilo que não gera consensos majoritários no Uruguay", com setores mais populares e menos escolarizado que se identificam com ele e outros mais escolarizado que predominantemente o rechaçam.

Mujica disse que caiu nas pesquisas "porque as pessoas estão muito melhores e ambicionam muito mais".
Destaca que em seu país de 3,3 milhões de habitantes, houve 850 mil que saíram da pobreza em sete anos e agora "exigem do governo e o governo dá o que pode"
No entanto, nega que as críticas o afetam.
" Eu vou seguir governando como me parece, no acerto ou no erro. Que critiquem tudo o que quiserem, para isso é a liberdade", comenta. " A mim, se tem criticado toda a vida".

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Uma música que deseja ser ouvida


São constantes as queixas sobre a baixa qualidade musical que circula por aí.  Mas quem define o que é bom e o que não é? O ouvinte? As pessoas podem e devem ouvir o que quiserem, mas o problema é que, em várias situações, música boa não chega. O famoso "jabá" invade tudo: rádio, novela, comercial, meio de transporte, nosso cérebro e até o mundo da pirataria. Será que acho facilmente um cd pirata do Francisco Aafa? Creio que não.
Esse cara tem uma voz incrível, doce e forte ao mesmo tempo. Apesar de ser piauiense, mora em Goiás há muito tempo e tem um amplo destaque cultural por lá. Em 1986, participou da faixa "Arrumação" do célebre  disco "Cantoria II", ao lado de Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai. 
A letra  maravilhosa, de autoria de Elomar, retrata os rincões do Brasil, o sertão mais profundo e desconhecido pela maioria. Uma pena essa pérola não virar "jabá".




Arrumação (Letra - Elomar ,Interpretação- Francisco Aafa)

Josefina sai cá fora e vem vê
Olha os forro ramiado vai chuvê
Vai trimina riduzi toda criação
Das bandas de lá do ri gavião
Chiquera pra cá já roncô o truvão
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo plantá o feijão no pó
Mãe prudença inda num cuieu o ai
O ai roxo dessa lavora tardã
Diligença pega o pano cum balai
Vai cum tua irmã, vai num rumo só
Vai cuiê o ai, o ai da tua avó
Lua nova sussuarana vai passá
Sêda branca, na passada ela levô
Ponta d'unha, lua fina risca no céu
A onça prisunha, a cara de réu
O pai do chiquêro a gata comeu
Foi um trovejo c'ua zagaia sõ
Foi tanto sangue de dá dó
Os cigano já subiro bêra ri
É só danos, todo ano nunca vi
Paciência, já num guento a pirsiguição
Já sô caco véi nesse meu sertão
Tudo que plantei foi só pra ladrão.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Pra quem gosta de folclore

Personagem forte do folclore brasileiro, o saci povoa o nosso imaginário e existem diversas versões do mito pelo Brasil afora. Folheando um livro sobre folclore do Alceu Maynard Araújo que tenho desde criança, me deparo com um texto sobre o Saci, que adoro. Reproduzo na íntegra pra quem gosta de folclore:

" Em São Luiz do Paraitinga, o Major Benedito de Sousa Pinto afirmou: "Conhecemos três espécies de saci: trique, saçurá e pererê. O Saci mais encontrado por aqui é o Saci-pererê. É um negrinho de uma perna só, capuz vermelho na cabeça e que, segundo alguns, usa cachimbo, mas eu nunca o vi. É comum ouvir-se no mato um "trique", isso é sinal que por ali deve estar um Saci-trique. Ele não é maldoso, gosta só de fazer certas brincadeiras como, por exemplo, amarrar o rabo de animais.
O Saçurá é um negrinho de olhos vermelhos; o Trique é moreninho e com uma perna só; o Pererê é um pretinho que, quando quer se esconder, vira um corrupio de vento e desaparece no espaço. Para se apanhar o pererê, atira-se um rosário sobre o corrupio de vento.
"Quando se perde qualquer objeto, pega-se uma palha e dá-se três nós, pois se está amarrando o "pinto" (pênis) do saci. Enquanto ele não achar o objeto, não desatar os nós. Ele logo faz a gente encontrar o que se perdeu porque fica com vontade de urinar (Amaro de Oliveira Monteiro).
Quando se vê um rabo de cavalo amarrado, foi o saci quem deu o nó. Tirando-se o gorrinho do saci-pererê, ele trará para quem lhe devolva, tudo o que quiser.
Quando passar o redemoinho de vento, jogando-se nele um garfo sai o sangue do saci. Outras versões: jogando-se um rosário o saci fica laçado; jogando-se a peneira, fica nela."
Também costuma-se ouvir o assovio do saci no meio do mato. À noite, adora  trançar as crinas dos cavalos, deixando-os totalmente embaraçados.
 Figura controversa e anárquica, o Saci ganhou as ruas da grande São Paulo e se destaca no cenário urbano através da obra do grafiteiro Thiago Vaz.


Mais:

ARAUJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional. vol 1 - Festas, bailados, mitos e lendas. Edições Melhoramentos. 1964.

Saci urbano: 

Sociedade dos observadores do Saci
http://www.sosaci.org/




segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O "Velho Oeste" é aqui!


Os tempos são difíceis. As últimas  tentativas de desmonte dos direitos indígenas através da PEC 215 e da Portaria 303 da AGU deram munição aos setores antiindígenas da sociedade. Os constante ataques às comunidades indígenas, sobretudo os Guarani-Kaiowá e o atropelo das grandes obras do setor energético estão solapando direitos adquiridos. Escrevi  algumas vezes sobre a grave situação dos Guarani-Kaiowá neste blog. Mas os avanços são praticamente nulos.

No dia 10-08-2012, durante a retomada de uma terra tradicional já homologada pelo governo, os indígenas foram atacados por pistoleiros. Saldo: uma criança morta e um  indígena desaparecido, além do grupo ser submetido à tortura física e psicológica por gente que defende com armas, unhas e dentes o direito à propriedade. 
No último fim de semana, circulou uma notícia em que um fazendeiro conhecido como "Lenço Preto" anuncia uma verdadeira guerra no MS nos próximos dias. Recheado de jargões como "eles querem terra só para incomodar", o discurso é o retrato da visão estereotipada de que "há muita terra para pouco índio".




Como a certeza da impunidade paira no ar, afinal de contas o "Paraguai é logo ali", nada mais seguro do que contratar pistoleiros da país vizinho. É assustador como essas manifestações escancaradas de ódio e racismo são cada vez mais comuns. 
Volto a repetir os escritos de outro post meu:
A ação de milícias armadas travestidas de empresas de segurança, contratadas por fazendeiros no MS contra homens, mulheres e crianças desarmados e que estão apenas fazendo valer seu direito é inadmissível. Esse poder paralelo, que vem intimidando até agente da Polícia Federal, está a serviço do “direito à propriedade”, jargão aclamado por muitos. Afinal, o discurso do agronegócio está sempre atrelado à “eficiência” e “produtividade”, necessários ao “desenvolvimento” do país. É um discurso que  cola, pois como se encontra intimamente ligado a valores patriarcais e moralistas,  a concentração fundiária signifca poder e honra.
O avanço das fronteiras agrícolas no país, seja para monocultura de soja, cana ou criação de gado está transformando o ambiente e provocando um verdadeiro genocídio entre os Kaiowá. Inseridos no rol dos refugiados ambientais, os Guarani-Kaiowá são expulsos de seus territórios tradicionais e lançados a situações degradantes e de extrema vulnerabilidade, com violações de todo tipo.  
Não podemos ser coniventes. No entanto, quando se trata de um coletivo ameaçado, como é o caso, a resposta muitas vezes é o silêncio. É urgente que as pessoas se mobilizem, coloquem a questão em pauta, cobrem do poder público, além de  discutir os atuais padrões de consumo. Caso contrário, vamos assistir passivamente, assoviando e chupando cana, o extermínio de outros líderes indígenas.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Rio + 20: por trás da festa

Não consegui chegar ao Riocentro hoje. Até que era previsto, mas não custava tentar...Aliás, os Kayapó também tentaram, foram barrados e voltaram para a Cúpula dos Povos indignados:
- Por que não deixaram a gente entrar??
Para a situação não ficar pior, mandaram o secretário de governo no final da tarde para acalmar os ânimos.

Raoni conversa com secretário do governo (foto: Luciana Galante)
Essa é uma das faces da Rio + 20, que negou o acesso de representantes das organizações socias, entre outras questões. Uma delas é que o Governo cedeu às pressões do Vaticano e tirou a expressão "direitos reprodutivos" do texto final, que designa a autonomia da mulher de decidir quando poderia ter filhos. Um balde de água fria para o movimento feminista. 
Se, por um lado, o Governo cede à pressões, por outro, se mostra irredutível com os movimentos sociais  e tenta amenizar as inúmeras denúncias realizadas por estes na Cúpula dos Povos.
Além disso, parece que a Cúpula e os movimentos sociais vem sofrendo um pequeno boicote.
No melhor estilo de "como desmobilizar as organizações", os ambulantes mal circulam pela Cúpula: comer algo parece tarefa impossível (mesmo ambulantes credenciados sofreram pressão para deixar o espaço) e iluminação não existe na área (mesmo com plenárias funcionando à noite). No entanto, os movimentos resistem, exigem um novo paradigma de desenvolvimento e que a privatização dos recursos naturais, travestida de "economia verde" seja escancarada.

Os Guarani-Kaiowá exigem respostas (foto: Luciana Galante)




terça-feira, 19 de junho de 2012

Desenho humano na Cúpula dos Povos - Rio + 20

 Animados e com a esperança que lhes é característica, os indígenas presentes no IX Acampamento Terra Livre decidiram marchar novamente. A Cúpula dos Povos na Rio + 20 está tomada por um colorido, por uma diversidade humana e uma força que há tempos não se via. 

O colorido dos artesanatos (foto: Luciana Galante)

Povos do mundo inteiro estão denunciando a devastação em seus territórios, a criminalização de seus movimentos e a pressão que sofrem por parte dos diversos atores envolvidos nos saques às suas terras e recursos.
Dar visibilidade ao movimento e à presença indígena era uma das metas quando decidiram em assembleia a realização do ato que foi realizado hoje na praia do Flamengo. 
Presença Xavante (foto: Luciana Galante)
A marcha firme, contou entoação de cantos que encorajavam os manifestantes e atenuavam o cansaço. Afinal, há dias que as delegações indígenas estão reunidas na Cúpula dos Povos, enfrentando uma verdadeira maratona de denúncias, propostas e elaboração de documentos. 

Não faltaram bandeiras (foto: Luciana Galante)

A força dos cantos encorajando a marcha (foto: Luciana Galante)


A religiosidade dos Guarani-Kaiowá (foto: Luciana Galante)
 O enorme grupo que se dirigia rumo à praia do Flamengo, chamou a atenção de toda a Cúpula dos Povos e da mídia, é claro. A manifestação culminou na formação de um enorme"banner humano" cujo mote era  questionar o modelo energético atual e atentar para a necessidade de garantir  aos indígenas os  seus territórios, seus recursos naturais bem como sua sobrevivência física e cultural.

Disposição (foto: Luciana Galante)

Compondo a imagem (foto: Luciana Galante)
Finalmente, após a organização dos manifestantes, uma belíssima imagem foi composta:


O "banner" (foto: AFP)
Apesar de todo o interesse midiático, esperamos que representantes governamentais  se sensibilizem com as questões e apontem para um novo rumo em que a diversidade cultural seja respeitada e não tratada como obstáculo ao "desenvolvimento".



segunda-feira, 18 de junho de 2012

Rio+20 - Marcha dos Povos

Hoje foi a vez dos povos indígenas tomarem as ruas do Rio. Após uma ampla discussão sobre os impactos em seus territórios provocados pelas grande obras, pelas mineradoras e pelo agronegócio, decidiram em Assembleia que era hora de ir para as ruas e chamar a atenção para a causa.

Indígenas decidem pela marcha em assembleia (foto: Luciana Galante)
Os problemas que denunciam são emblemáticos, uma vez que por trás do discurso do "desenvolvimento sustentável" e da "economia verde" há uma verdadeira usurpação e apropriação dos recursos de uso comum como água, alimentos e, claro, território.

Guarani-Kaiowá denunciam o genocídio no Mato Grosso do Sul (foto Luciana Galante)
A marcha ocorreu rumo ao BNDES, um dos grandes financiadores de projetos que impactam as áreas indígenas como as hidrelétricas de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio. 
Preocupados com a PEC - 215 (foto: Luciana Galante)

Os Guarani - Kaiowá exigem respostas (foto: Luciana Galante)

A força Kayapó (foto: Luciana Galante)

Yanomami: presença fundamental (foto: Luciana Galante)

Manifesto em frente ao BNDES (foto: Luciana Galante)

Os maracás: religiosidade e resistência (foto: Luciana Galante)

Juntos na marcha (foto: Luciana Galante)
O vice-presidente do BNDES, João Carlos Ferraz, se reuniu com um grupo de 12 lideranças indígenas que apresentou os impactos sofridos por suas comunidades com a execução dessas obras.
Com o objetivo de solucionar o problema, foi criada uma comissão para levantar os problemas causados pelos empreendimentos financiados pelo banco e que afetam as comunidades indígenas. Ainda não é a solução, mas não deixa de ser uma conquista para o movimento. A luta continua, sempre.


domingo, 17 de junho de 2012

"SOMOS POVO DA FLORESTA!!"


A plenária sobre energia e indústrias extrativistas que aconteceu hoje na Cúpula dos Povos da Rio+20, contou com a presença de delegações indígenas de vários países como México, Guatemala, Peru, Canadá, Brasil, Bolívia.

Líderes denunciam devastação em seus territórios (foto: Luciana Galante)


 A denúncia se assemelha: a mineração e a demanda por energia vem assolando comunidades, privando-as de recursos de uso coletivo como água e território. Não bastasse, muitas são contaminadas com metais pesados e sofrem violência direta por parte dos extratores. As perspectivas não são nada favoráveis, uma vez que possivelmente teremos um aumento significativo do contingente de refugiados ambientais nos próximos anos. Estes, desprovidos de seus referenciais territoriais, são obrigados a deixar suas regiões e migrar para áreas que nunca em ocupar antes.
Indígena canadense denuncia ação de mineradora  (foto: Luciana  Galante)
Para essas comunidades, isso significa uma ruptura irreparável em seu modo de vida. Sem os seus referenciais ambientais, são impedidas inclusive de exercerem sua espiritualidade e obrigadas a ressignificar outros espaços quando possível, claro.
Um depoimento me chamou muito a atenção. Foi um Yanomami, o líder Masi, quem atentou para práticas realizadas na história do Brasil quinhentista:
“ O Governo Federal precisa conhecer nossos lugares, conhecer a nossa casa, ver a nossa cara e falar na nossa cara que vai fazer barragem. O Governo precisa respeitar nossos xamãs. Nossos xamãs precisam da nossa floresta em pé. Na fronteira com a Venezuela, mineradores estão matando nossos parentes. A FUNAI está vendo isso. Nós não temos muitas informações, mas sabemos que os garimpeiros deram arroz com veneno para os nosso parentes. Eu sou Yanomami, eu sou povo da floresta e o Governo tem que ouvir a gente!!!”

Masi, líder Yanomami (foto: Luciana Galante)
Nos resta somar força à denúncias desse tipo. Práticas extrativistas que atentam contra a integridade física e cultural dessas comunidades e violam o sagrado sem o menor escrúpulo, jamais podem ser chamadas de “desenvolvimento” e, muito menos, “sustentável”.

sábado, 16 de junho de 2012

"Demarquem nossas terras" - Egon Heck


Esse artigo é do blog do companheiro Egon Heck

Demarquem nossas terras

Após a abertura do Acampamento Terra Livre, na Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro, um batalhão de fotógrafos  estava seguindo uma pessoa que adentrava ao Auditório 33 onde estavam algumas centenas de indígenas de todo o Brasil. Antonio Patriota, ministro das Relações Exteriores, veio dar uma olhada apenas no evento. Mas foi convidado pelos índios a dar uma palavra aos presentes. Deixou escapar o que parece ser a grande preocupação do governo: tentar convencer o mundo de que no Brasil é possível conjugar desenvolvimento com proteção ambiental. 
Para os povos indígenas esse esforço do governo brasileiro é em vão. É apenas  uma retórica fantasiosa ( para não dizer mentirosa) onde a onda de desenvolvimentismo, uma vez mais tem os povos indígenas como maiores vítimas. Basta olhar o descalabro e o caos  em que estão a saúde e educação indígena e mais grave ainda a total falta de uma política de produção de alimentos, de acordo com a lógica das economias indígenas.  Prefere-se institucionalizar a dependência através das cestas  básicas.


Logo após as breves palavras do ministro Antonio Patriota, Otoniel Kaiowá Guarani  do Mato Grosso do Sul pegou o microfone para dizer exaltado. “Demarquem nossas terras.  É bom o senhor estar aqui. Queremos a demarcação de nossas terras urgente. Não adianta falar em economia e proteção ambiental para nós, o que queremos e precisamos que o governo demarque as nossas terras”.
Acampamento Terra Livre
“A salvação do planeta está na sabedoria ancestral dos povos indígenas”, consta no folder da programação do IX Acampamento Terra Livre, organizado pela Articulação dos Povos Indígena do Brasil, e que se integra com agendas, participação e contribuições dos povos indígenas do continente Abya Yala. Durante uma semana serão debatidos os grandes temas que desafiam a humanidade hoje e em especial os povos indígenas do mundo. Serão feitos mobilizações, rituais, debates e elaborado um documento que expressa a posição do movimento indígena mundial diante da grave crise em que o sistema capitalista é uma ameaça à sobrevivência da vida no planeta. 
“O respeito aos povos indígenas requer valorizar a sua contribuição na formação social do Estado nacional e reconhecer o papel estratégico que os territórios indígenas tem desenvolvido milenarmente na preservação do meio ambiente, na proteção da biodiversidade e na solução dos problemas que hoje ameaçam a vida no planeta”
Essas atividades dos povos indígenas previstas para os próximos dias fazem parte dos mais de 3 mil eventos que estão previstos.
Mandantes do assassinato de Nisio Gomes, na cadeia


Foi deflagrada operação de prisão  dos mandantes e envolvidos no assassinado do cacique Nisio Gomes, conforme noticiou a imprensa de Campo Grande. O cacique foi assassinado em novembro último passado na Terra Indígena Guayviri, no município de Aral Moreira, no Mato Grosso do Sul. Mesmo que o anúncio da operação tenha  sido estrategicamente feito no decorrer da Cúpula dos Povos e Rio + 20, o que se espera é agilidade da justiça para  punir os responsáveis de dezenas de lideranças assassinadas e que permanecem na total impunidade. Além do mais não se tem ainda informações sobre o corpo do Nisio e do professor Rolindo. Que a prisão dos mandantes abra caminho para a localização dos corpos.



Egon Heck
Cúpula dos Povos, 15 de junho de 2012



Povo Guarani Grande Povo

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Angelito

Senti uma baita necessidade de escrever esse post depois que assisti o filme " Violeta foi ao céu" (Violeta se fue a los cielos), uma biografia da multiartista chilena Violeta Parra. Não vou fazer uma resenha sobre o filme, mas há uma passagem do mesmo em que o "angelito" merece destaque. Dá-se o nome de "angelito" às crianças que falecem antes de completar três anos e, segundo as tradições do campo chileno, o velório do "angelito" é uma das principais instâncias do canto ao divino. Essa prática também pode ser encontrada em algumas regiões do Uruguai e Argentina. 
A cerimônia conta com diversos cantos e rezas em meio a incensos. Há também uma ceia que ocorre à meia-noite e a construção de uma espécie de altar onde o corpinho da criança é vestido como um anjo: colocam uma túnica e o adornam com asas para que faça sua viagem aos céus. Ás vezes o corpinho é colocado de pé ou sentado, com as mãos juntas segurando um ramo de flores brancas. O ritual é acompanhado por cânticos, rezas e, em algumas ocasiões, com um baile conhecido como balambo
Pode nos parecer estranho e de mau gosto mas, um ritual desses diviniza o angelito e atenua a dor. Pura, a criança é livre de pecados e ascende diretamente aos céus. No entanto, não é recomendável chorar, pois as lágrimas podem molhar as asas do "angelito" e dificultar sua viagem. 
Violeta Parra perdeu sua filha ainda bebê e transformou sua dor numa fabulosa canção chamada "Rin del Angelito" disponível no vídeo abaixo, cujas cenas são do filme chileno "Largo Viaje" , de 1967, que retrata o velório de um angelito.


Mas afinal, por que a necessidade de escrever sobre isso? 
O filme me remeteu à situações que vivenciei,  trabalhando com as populações indígenas. Infelizmente, presenciei a morte de alguns angelitos indígenas e foram momentos muito difíceis. Porém, uma delas ficou cravada na memória: minha primeira viagem à uma aldeia Kulina no AM. Foi um verdadeiro batismo de fogo. 
Ao chegar na aldeia vimos que uma mãe Kulina estava muito aflita, pois sua bebê de apenas 1 ano encontrava-se muito desidratada. Provavelmente devido à uma virose que havia contraído. Como já haviam tentado curá-la e não obtiveram sucesso, pediram que a levássemos para o hospital o mais rápido possível. Prontamente, colocamos mãe e filha no barco e, com o motor no máximo, nos dirigimos à cidade. Mas esta ficava muito distante, quase um dia inteiro de viagem. 
Preparei um soro caseiro e ministrava uma colher à bebê de cinco em cinco minutos. O estado dela era tão grave que as moscas pousavam sem descanso. À certa altura, numa das pausas, ouço a mãe chorando. Meus companheiros de trabalho, nervosos ao extremo, olham pra mim atônitos. Me dirijo à mãe e pego a bebê de seus braços: está morta. Não me resta outra alternativa a não ser enrolá-la num lençol e seguir viagem. Cai uma chuva torrencial, dessas de lavar a alma. Não, não havia onde nos abrigarmos, era só floresta e rio... Após horas intermináveis, chegamos à cidade onde o "angelito" foi posteriormente sepultado.
Nesse dia, intimei Deus e tive minha maior briga com ele.




quarta-feira, 30 de maio de 2012

"Vocês sabiam que as árvores falam?"

Tatanga Mani (Búfalo Andarilho) foi um importante líder dos índios Stoney. Nasceu em 20 de março de 1871 e desempenhou um papel fundamental como emissário da paz entre seu povo e o governo canadense. Frequentou as escolas dos brancos sem deixar de "estudar a natureza", tornando-se um verdadeiro diplomata. Já idoso, foi convidado pelo governo para uma volta ao mundo como representante dos indígenas. Morreu em 1967, sempre defendendo que a ligação do homem com a natureza é a chave para sua própria sobrevivência. 
Grande orador, seus discursos eram profundos,  além de provocadores: 

" Éramos um povo sem lei, mas nos dávamos muito bem com o Grande Espírito, criador e legislador de tudo. Vocês brancos, diziam que éramos selvagens. Vocês não entendiam nossas preces. Nem procuraram entender. Quando cantávamos para o Sol, a Lua ou o Vento, diziam que estávamos adorando ídolos. Sem compreender, nos condenavam como almas perdidas, só porque nossa forma de adoração era diferente da de vocês.

Tatanga Mani (Búfalo andarilho)
Víamos a obra do Grande Espírito em quase tudo: sol, lua, árvores, vento e montanhas. Às vezes nos aproximávamos Dele através dessas coisas. Havia algum mal? Acho que temos uma crença verdadeira no ser supremo, uma fé mais forte que a da maioria dos brancos que nos chamam de pagãos...Vivendo junto à natureza e do seu criador, os índios não vivem na escuridão.
Vocês sabiam que as árvores falam? Pois é verdade. Falam entre si, e falarão com você se quiser escutar. O problema é que os brancos não escutam. Não aprenderam a escutar os índios, e assim não creio que possam ouvir outras vozes na natureza. Mas eu aprendi um bocado com as árvores: às vezes sobre o tempo, às vezes sobre os animais, às vezes sobre o Grande Espírito".

Mais:

- Mc Luhah, T.C. Pés nus sobra a Terra sagrada: um impressionante auto-retrato dos índios americanos. Ed. L&PM.1986.



segunda-feira, 28 de maio de 2012

O pensamento livre

Que Albert Einstein (1879-1955) era um grande humanista é de conhecimento de muitos. Porém, a dimensão do humanismo de Einsten é algo notável, uma vez que sua crença na humanidade persistia mesmo diante de atrocidades como a guerra. Pacifista convicto e crítico incansável do regime militar, via o exército como a pior das instituições, que que deveria ser boicotada e banida de vez da sociedade:

"Creio que a recusa ao serviço militar, pela objeção de consciência simultaneamente afirmada por cinquenta mil convocados ao serviço, teria um poder irresistível...Se os povos quiserem escapar da escravidão abjeta do serviço militar, tem de se pronunciar categoricamente pelo desarmamento geral. Enquanto existirem exércitos, cada conflito delicado se arrisca a levar à guerra".

Chamava os intelectuais para a responsabilidade sobre os rumos da sociedade. A atmosfera era tensa, a ameaça da Segunda Guerra Mundial pairava no ar e a opinião pública fora tomada por um "nacionalismo cego"  pela atividade de "políticos reacionários". Diante do impasse, o recado aos intelectuais foi objetivo:

" Que deve fazer a minoria intelectual contra esse mal? Só vejo uma saída possível: a revolucionária, da desobediência, a da recusa a colaborar, a de Gandhi. Cada intelectual, citado diante de uma comissão, deveria negar-se a responder. O que equivaleria a estar pronto a deixar-se prender, a deixar-se arruinar financeiramente, em resumo, a sacrificar seus interesses pessoais pelos interesses culturais do país."

Defendia uma educação libertária e atentava para a importância das Ciências Humanas, sobretudo da História e da Filosofia como instrumentos para a formação de um indivíduo consciente, altruísta e não apenas um tecnocrata. Preocupava-se com a competitividade que insistia em entranhar-se no meio social e acadêmico:

"Os excessos do sistema de competição e de especialização prematura, sob o falacioso pretexto da eficácia, assassinam o espírito, impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os progressos nas ciências do futuro...O ensino deveria ser assim: quem o recebe o recolha como um dom inestimável, mas nunca como uma obrigação penosa".

Homem simples, espirituoso e uma das grandes mentes que a humanidade já teve, quem o conheceu afirmava que era um ser humano inacreditável, tamanha sua humildade.

Mais:

Einstein, Albert. Como vejo o mundo. Ed. Saraiva.2011



terça-feira, 22 de maio de 2012

Kiringue: a criança Guarani



Criada para a autonomia, kiringue, a criança Guarani, é livre, aprende com os erros, adquire habilidades  e responsabilidades desde muito cedo. Lindas, são a expressão da continuidade e esperança de seu povo.

Irmãos (foto: Luciana Galante)

Encantadoras como todas as crianças, sonham com rios cristalinos onde possam nadar, frutos silvestres que possam colher e animais com os quais possam brincar.

O quati fujão (foto: Luciana Galante)

Observadoras, atentam para o universo ao redor e interagem com a destreza de quem já habita essa terra há muito tempo. 

Olhos de jabuticaba (foto: Luciana Galante)

Criativas, seu imaginário lhes permite lidar com imprevistos e ir além, extrapolando fronteiras e limites. 

O guarda-chuva (foto: Luciana Galante)
Encontram a felicidade na simplicidade do coletivo, que insiste e resiste, enquanto nos isolamos encastelados por um império de futilidades e necessidades criadas.






sexta-feira, 11 de maio de 2012

Bandeirantes faz mais uma vítima Guarani: a história se repete

Cheguei em Tekoa Pyau ontem e encontrei a aldeia mergulhada em tristeza, em luto novamente. Não está sendo um ano fácil, ocorreram muitas baixas em pouco tempo. Dessa vez, quem virou estrela foi Rodinei, um jovem Guarani de 22 anos, vítima de atropelamento na Rodovia dos Bandeirantes. Ainda não se sabe ao certo quais foram as circunstâncias do acidente. Sabemos que foi à noite, por volta das 21h e que ele estava acompanhado de dois amigos. Ambos não conseguem falar, estão em estado de choque.
Rodinei fazia parte de um grupo de jovens na aldeia muito articulado, envolvido com questões de interesse  coletivo e, como disseram os Guarani, um rapaz muito tranquilo, prestativo e que seguia arandu porã (o bom conhecimento), o que significa, segundo a tradição, que sua conduta era impecável. Rodinei deixou mulher e dois filhos pequenos. 
Vale ressaltar que este não foi o único caso de atropelamento nas proximidades da aldeia. Ano passado a Rodovia dos Bandeirantes também fez vitimas. 
Espremida pela Estrada Turística do Jaraguá e pela Rodovia dos Bandeirantes, as lideranças de Tekoa Pyau há tempos temem pela segurança de seus moradores, sobretudo as crianças, já que estas precisam atravessar a estrada para frequentar a escola. 
É urgente discutir a vulnerabilidade em que se encontram os moradores de Tekoa Pyau e que o poder público garanta sua segurança. 
Impressiona como o legado bandeirante atravessa a história e perpetua o medo: Anhanguera, Bandeirantes e Raposo Tavares são apenas alguns exemplos de como o nosso estado glorifica aqueles que espalharam terror, escravizaram assassinaram e, mesmo indiretamente, continuam massacrando indígenas.

                                               Rodovia dos Bandeirantes, ao fundo o Pico do Jaraguá
                                                                                        (Foto: Daniel Souza Lima)







quarta-feira, 25 de abril de 2012

A Guerra da Água - Vandana Shiva



“O povo não possui mais o direito de aplacar a própria sede. Esse direito, hoje em dia, é exclusividade dos ricos. Até mesmo o presidente da Índia lamentou tal infortúnio: ‘Enquanto a elite se compraz com bebidas gazeificadas, os pobres rivalizam por um punhado de água enlameada’.”
 
A Grande Sede
Nas maquiladoras do México, o mais corriqueiro dos atos, aquele de beber água quando estamos sedentos, tornou-se tão improvável e espetacular que crianças e bebês aplacam a sede ingerindo Coca e Pepsi-Cola.
Os produtos da Coca-Cola são comercializados em 195 países, gerando um rendimento de 16 bilhões de dólares. A escassez de água é, sem sombra de dúvida, uma fonte de lucros para a companhia. A própria Coca-Cola não esconde essa informação, publicando-a num de seus relatórios anuais.
Todas as manhãs acordamos certos de que cada um dos 5,6 bilhões de habitantes do planeta ficará sedento em alguma hora do dia. Se conseguirmos, de alguma forma, restituir a esses 5,6 bilhões o direito à água potável, evitando que se rendam à Coca-Cola, estaremos semeando, aqui e agora, um futuro melhor.
As companhias de refrigerantes estão completamente atentas para o mercado de águas. Tanto a Coca-Cola quanto a Pepsi lançaram produtos nessa linha, a primeira com a etiqueta Bom Aqua e a segunda com o rótulo Aquafina. Mas há inúmeras outras marcas, como Perrier, Evian, Naya, Poland Spring, Clearly Canadian e Purely Alaskan.
Em março de 1999, numa pesquisa envolvendo 103 marcas de água engarrafada, a Natural Resoures Defense Council descobriu que um quarto delas não era senão água de torneira, enquanto um terço, o que é mais grave, continha arsênico e E. Coli. Na Índia, um estudo conduzido pelo Consumer Education and Researsh Centre revelou que somente três dentre treze marcas conhecidas confirmavam as especificações do rótulo. Das marcas condenadas, nenhuma estava livre de bactérias, embora anunciassem justamente o contrário. Tal publicidade falsa e enganosa forçou o governo indiano a alterar as regras de prevenção de adulteração de alimentos. Hoje, essas regras se aplicam também às águas engarrafadas e estabelecem uma rígida distinção entre águas minerais obtidas diretamente das fontes (e acondionadas próximo a elas) e aquelas meramente tratadas para consumo.
Mas as conseqüências do engarrafamento de água vão muito além dos preços altos e da contaminação por agentes nocivos. De fato, a poluição ambiental é a maior das calamidades que a indústria de águas nos pode impingir. Há cerca de 30 anos, 300 milhões de garrafas d’água já eram comercializadas com material que hoje constitui verdadeira praga: o plástico não reciclável.
As corporações, como era de se esperar, estão tirando todas as vantagens da demanda por água pura, demanda essa que é conseqüência da poluição ambiental para a qual elas tanto contribuem. Embora realizem uma atividade exclusivamente extra-tiva, retirando água de mananciais não industrializados e não poluídos, as corporações se referem a essa prática como “manufatura” da água. Empresas como Nestlé, Pepsi e Coca-Cola estão abrindo fábricas para engarrafamento de água em vários países do terceiro mundo. Somente na Índia, o mercado de águas concentra mais de 104 milhões de dólares, com uma estimativa de aumento de 50 a 70% por ano. Em outras palavras: a produção de água engarrafada dobra a cada dois anos. Entre 1992 e 2000, as vendas cresceram de 95 milhões para 932 milhões de litros.
À medida que a indústria de engarrafamento de água se expande velozmente pela Índia, o antigo costume de oferecer água aos sedentos vai desaparecendo. Durante milhares de anos a água foi ofertada como dádiva em templos e mercados à beira de estradas. Potes de barros, mesmo no verão, mantinham a água fresca para deleite dos sedentos, que a sorviam utilizando-se das próprias mãos em forma de concha. Esses potes estão dado lugar a garrafas de plástico, e a economia da dádiva vem sendo suplantada pela economia de mercado. O povo não possui mais o direito de aplacar a própria sede. Esse direito, hoje em dia, é exclusivamente dos ricos. Até mesmo o presidente da Índia lamentou tal infortúnio: “Enquanto a elite se compraz com bebidas gazeificadas, os pobres rivalizam por um punhado de água enlameada”.
 
A Luta das mulheres de Plachimada contra a Coca-Cola
Numa pequena vila e Plachimada, na Índia, mulheres organizaram-se para interromper as atividades de uma fábrica de Coca-Cola; e, por incrível que pareça, estão obtendo sucesso nessa campanha.
Há um ano a fábrica iniciou a produção de Coca, Fanta e Sprite. Nesse ínterim, o nível do lençol freático da região começou a declinar a olhos vistos. Segundo a comunidade local, a queda se explicava pelo fato de que 1,5 milhão de litros de água eram extraídos por dia de poços perfurados pela multinacional (Vale informar que cada litro de refrigerante requer, para sua fabricação, de 3 a4 litros de água. Levando-se em conta o número de refrigerantes vendidos em 2001 na Índia, pode-se afirmar que a Coca-Cola usurpou perto de 30 milhões de litros de água do território indiano naquele ano, ou seja, aproximadamente 80 milhões de litros por dia).
Os problemas, no entanto, não se limitavam à queda do nível do lençol freático: a água, tornou-se também poluída. As mulheres eram obrigadas a percorrer milhas de distância em busca de água potável. Revoltadas, decidiram dar fim à hidropirataria da Coca-Cola: plantaram-se em frente aos portões da fábrica e, bradando as palavras de ordem “Não à Coca-Cola e Sim à Água”, exigiram o seu fechamento. Tal manifestação foi um exemplo de democracia conectada diretamente com as fontes vibrantes da vida.
Logo depois, os dirigentes locais emitiram uma licença condicional que impunha limites à extração de água pela Coca-Cola. Mas a companhia, atropelando as autoridades, chegou ainda a extrair ilegalmente centenas de milhares de litros de água limpa por dia para fabricar seus refrigerantes. Além disso, estava a Coca-Cola conduzindo os resíduos sólidos dos poços exauridos para além de seus muros. Na estação das chuvas, esses resíduos atingiam os campos de arroz, os canais e as fontes d’água, trazendo sérios riscos para a saúde da população. Como conseqüência dessas injúrias à natureza. 260 poços instalados pelo governo visando a fornecer tanto água potável quanto irrigação para a agricultura, estão hoje quase que extintos.
Inquirida pelo poder público sobre pormenores de suas atividades, a Coca-Cola recusou-se a colaborar. As autoridades, por conseguinte, valendo-se de uma notificação judicial, cassaram-lhe a licença. Partiu então a multinacional para uma prática ímproba da qual não costuma abrir mão: tentou subornar um governante com 300 milhões de rúpias. Mas ele, exemplo de coragem e retidão, negou-se a ser cooptado e a engrossar as fileiras de políticos dissolutos e prostutuídos.
As autoridades locais também entraram com uma ação contra a Coca-Cola no Tribunal de Justiça. Em dezembro de 2003, a Justiça garantiu os direitos das mulheres de Plachimada, ordenando à Coca-Cola a interrupção das atividades de hidropirataria que empreendia na região.
Tal decisão é uma prova do poder do movimento das mulheres de Plachimada contra a Coca-Cola. Em janeiro de 2004, a Conferência Internacional sobre Águas realizou-se naquela localidade não só para celebrar a vitória legal, mas também para levar solidariedade ao movimento. É preciso fortalecê-lo ainda mais a fim de que o alvo, o fechamento da fábrica, seja alcançado.
Na ocasião, foi redigida a Declaração de Plachimanda.
 
Declaração de Plachimada
 
1 – A água é o fundamento da vida. Ela é uma dádiva da Natureza e pertence a todos os seres vivos do planeta.
2 – A água não é uma propriedade privada. Ela é um recurso comum para a subsistência de todos.
3 – A água é o mais fundamental direito do homem. Ela deve ser conservada, protegida e administrada, visando ao bem de todos. É nossa obrigação básica preservá-la e garanti-la para gerações futuras.
4 – A água não é uma mercadoria. Devemos lutar contra qualquer tentativa criminosa de negociar ou privatizar a água. Só através dessa luta é que podemos assegurar o fundamental e inalienável direito à água para todos os povos da Terra.
5 – A Política da Água deve, necessariamente, ser formulada tendo por base as premissas anteriores.
6 – O direito de conservar, utilizar e administrar a água deve ser integralmente conferido à comunidade local. Esta é a base mesma da democracia da água. Qualquer tentativa de reduzir ou negar este direito constitui crime.
7 – A fabricação e comercialização dos produtos tóxicos da Coca e Pepsi-Cola levam à total destruição e poluição de importantes recursos naturais, pondo em risco a própria sobrevivência das comunidades locais.
8 – A resistência que tem surgido em Plachimada, Pududdery e em várias partes do mundo é um símbolo da brava luta contra as corporações diabólicas que pirateiam nossa água.
 
 
Vandana Shiva é diretora da Fundação de Pesquisa para a Ciência, Tecnologia e Ecologia, em Nova Delhi, Índia, e uma grande ativista ambiental.